"A dor do desaparecimento é uma das mais cruéis, mata-se uma pessoa e condenada-se todas as outras a uma...
Tortura psicológica".
"Ainda Estou Aqui" é uma poderosa história acerca da perda inoportuna e sem explicação de um Ente querido e como sua falta pode trazer danos irreversíveis para aqueles ao redor. Diante do desaparecimento de seu marido, o ex-debutado e engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), devido a Ditadura Militar, Eunice Paiva (Fernanda Torres) é obrigada a se recompor, a o que enfrenta a dor e a luta para cuidar e proteger seus filhos ao longo das décadas. Enquanto, busca a verdade em relação ao destino de seu marido, mantendo sua dor e angústias dentro de si para proteger aqueles que ainda pode.
Um olhar pode ser mais poderoso do que mil palavras. Em uma atuação tocante e poderosa, Fernanda Torres transmite por meio de seu olhar, toda a dor, angústia e medo que cerca a personagem, emocionando-nos não apenas nas palavras, sobretudo, em suas expressões. A dinâmica de Eunice com seus filhos é devastadora, retraindo seus sentimentos e angústias para poder trazer calma e força aos seus filhos, evidenciado brilhantemente na atuação de Torres, que drasticamente altera suas reações, suavizando-as na frente da família ou amigos. Sua atuação não está concentrada nos diálogos, mas no silêncio entre eles, com pouquíssimas cenas de choro, Fernanda emociona, impacta e transmite poderosos sentimentos pelo olhar.
Entre tantas mensagens que perpetuam a narrativa, a fundamental torna-se a valorização da memória. Durante toda a obra, por meio de fotografias e gravações, Eunice e toda a família recordam de momentos felizes, recordações de família, sendo as últimas lembranças de uma época que nunca mais voltará, um vazio que perpetuará pelo resto daquela família, assim como de tantas que sofreram nas mãos da ditadura. Uma lacuna que sempre existirá em nossa história brasileira.
Por meio da sutilidade e sensibilidade das cenas, Salles conduz uma intrigante e atemporal história, emocionando-nos tanto nas agens mais angustiantes e carregadas dos mais genuínos e poderosos sentimentos. As cenas soam como um soco silencioso no peito, fazendo a boca tremer, enchendo os olhos d'água. Simultaneamente, as cenas cotidianas da família transmitem a incerteza e a inquietação em relação ao destino do pai e o incerto futuro.
A trilha sonora possui um papel fundamental na obra, além de integrar-nos a estética dos anos 70, juntamente se conecta a jornada de Eunice, a escolha de "É preciso dar um jeito, meu amigo." faixa composta por Erasmo Carlos não está aqui por acaso. Após o desaparecimento de Rubens, Eunice precisa dar um jeito e encontrar um novo rumo para sua família e para si, buscando maneiras de cuidar e proteger sua família, tendo que enfrentar o sistema patriarcal daquele tempo, para garantir um futuro para aqueles que amava. Um trabalho muito bem pensado e realizado lindamente.
Com uma ambientação lindíssima e uma recriação incrível das décadas de 70 e 90, a obra realiza alguns saltos temporais, essências para a construção da história de Eunice Paiva, desde da calmaria de uma vida feliz antes do desaparecimento do marido, até os últimos momentos de sua vida. Com a participação especial de Fernanda Montenegro (Central do Brasil e O Auto da Compadecida), sem a necessidade de falas, por meio de um olhar hipnotizante e devastador, emociona-nos e faz-nos pensar: memórias são resistência, lembrar para nunca mais acontecer.
Em suma, Ainda Estou Aqui é uma poderosa história, que nós relembra que a memória é mais pura forma de resistir, sem ela, não iríamos relembrar os momentos bons e felizes e não lutariamos para alcançar um futuro melhor. Em uma das atuações mais impressionantes que pude assistir, Fernanda Torres leva-nos em uma jornada através da dor da perda, onde o olhar demostra um vazio que nunca será preenchido, seu rosto se torna um campo de batalha entre uma dor intensa e uma força imensa, guiada por um grande sentimento de amor, basta um olhar para compreender tudo.